quinta-feira, 13 de setembro de 2007

CREOULA : 70 ANOS DE TRADIÇÃO

Em Portugal, a história tem navegado de braço dado com os navios desde sempre. O nosso passado e cultura marítima só tiveram os contornos que conhecemos pela existência dessas criaturas, quantas vezes esquecidas, designadas por navios.
Apesar de hoje parecermos mais um País a “ver navios” do que uma terra de marinheiros, os navios continuam a fazer parte integrante da realidade portuguesa contemporânea, com alguns particularmente famosos por aliarem a tradição passada a um presente que se quer aproado ao mar.
Lançado à água nos Estaleiros Navais do Porto de Lisboa há 70 anos, o lugre CREOULA é um desses navios famosos a justificar admiração e orgulho. Admiração pela beleza das suas linhas simples, a lembrar um cisne dos mares. Orgulho pelos serviços relevantes que, mercê de uma boa estrela, o navio vem prestando desde 1937 ao País.

UMA HISTÓRIA FASCINANTE

O CREOULA, que este Verão navegou no Mediterrâneo com jovens portugueses em treino de mar, tem uma longa história.
Foi construído em Lisboa nos antigos estaleiros da Rocha do Conde de Óbidos, então arrendados pelo Porto de Lisboa à CUF – Companhia União Fabril, do industrial Alfredo da Silva. Destinou-se a uma empresa pioneira na pesca do bacalhau, a Parceria Geral de Pescarias, Lda., então propriedade do Armador Sr. Vasco Bensaude e de facto fez 37 campanhas anuais de pesca aos míticos bancos da Terra Nova e Gronelândia entre 1937 e 1973.
Não ficaria por aqui o contributo do CREOULA para a nossa história marítima contemporânea. A qualidade e originalidade da sua construção e o facto de ter sido sempre mantido em excelentes condições pela empresa armadora fizeram logo despertar o interesse de estrangeiros no sentido da sua transformação para cruzeiros turísticos, como aconteceu ao lugre ARGUS, mas o seu valor patrimonial foi reconhecido pelo Estado, que obrigou o armador à cedência do CREOULA por um valor simbólico.
Nas mãos do Estado desde 1979, pensou-se de início em preservar o CREOULA como museu das pescas, adaptando-o para utilização estática. Felizmente o excelente estado do casco levou o então Secretário de Estado das Pescas, Eng. José Carlos Gonçalves Viana, um dos poucos Governantes das últimas décadas com conhecimentos e respeito pelos navios e sua importância, a alterar o projecto, promovendo a transformação do CREOULA para navio de treino de mar, isto é, navio-escola de vela destinado a embarcar jovens para períodos de familiarização com a vida a bordo e no alto-mar.
A ideia teve concretização feliz, e o CREOULA foi modernizado e alterado em Lisboa nos estaleiros Parry & Son, sob a direcção de um dos comandantes mais ilustres do tempo da Parceria, o Sr. Capitão António Marques da Silva. Mantendo a traça original, os espaços anteriormente utilizados para porão do sal e do peixe deram lugar a cobertas para alojamentos adequados ao embarque de 51 instruendos além de uma guarnição composta por 6 oficiais e 32 sargentos e praças.
A renovação do CREOULA ficou concluída em 1987 e foi decidido entregar o navio à Marinha de Guerra Portuguesa, que o recebeu oficialmente no dia 1 de Junho de 1987. Desde então o CREOULA tem navegado graças à dedicação da Marinha que tem sido inexcedível no carinho e interesse com que vem cumprindo desde há já 20 anos as missões associadas ao navio.
Classificado como Navio de Treino de Mar, o CREOULA participa anualmente nas principais regatas de grandes veleiros disputadas em águas europeias, do Báltico ao Mediterrâneo, muitas vezes ao lado desse outro ícone marítimo nacional que é a barca SAGRES. Além dessas regatas normalmente organizadas pela Sail Training Association, o CREOULA tem feito inúmeros cruzeiros na costa portuguesa, ilhas Atlânticas, Terra Nova, Cabo Verde, África do Norte, etc., facultando a descoberta do mar a milhares de jovens.
Alguns desses jovens desenvolveram graças ao CREOULA uma verdadeira paixão pelo mar, embarcando sucessivamente ano após ano no navio.

MUSEU VIVO

Em 70 anos de navegações, o CREOULA tornou-se num museu vivo único no mundo. A traça original de lugre bacalhoeiro permanece como repositório de histórias de um passado recente e quase esquecido. A bordo do CREOULA é possível sentir ainda a dureza das inclemências do mar que todos os anos centenas de pescadores tão corajosos como anónimos enfrentavam sós, nos seus dóris, a remos, na imensidão do Atlântico Norte.
O navio é também memória do ressurgimento da indústria naval ao tempo do Estado Novo. Foi construído em Lisboa, por operários portugueses, oficialmente em apenas 62 dias úteis de trabalho. O lançamento solene ao Tejo foi presidido pelo Chefe de Estado, Marechal Óscar Carmona, na tarde de 10 de Maio de 1937. Para o casco foi utilizado aço da melhor qualidade que havia sobrado da construção de contratorpedeiros.
A construção do CREOULA cifrou-se em 2500 contos, recebendo um subsídio do “Fundo de Desemprego” no valor de 446 contos, apoio repartido com o irmão gémeo SANTA MARIA MANUELA, construído ao lado do CREOULA e lançado ao mar na mesma ocasião.
Terminado o aprestamento e aparelhado em lugre de quatro mastros, o CREOULA saiu para o mar pela primeira vez a 30 de Junho de 1937 rumo aos bancos de pesca da Terra Nova. A bordo seguiam cerca de 50 pescadores, 25 dos quais açoreanos, como era tradição da Parceria Geral de Pescarias.
Exactamente 70 anos depois do bota-abaixo, o aniversário do CREOULA foi comemorado em Lisboa a bordo, numa festa quase de família, promovida pelo Comando do navio e pela Marinha.
O CREOULA estava atracado à Doca da Marinha. Embandeirado festivamente e impecável com o seu belo casco branco e mastros amarelos, parecia tão jovem e cheio de energia como quando desceu a carreira no estaleiro da Rocha 70 anos antes. De entre os convidados, todos os antigos Comandantes ainda vivos, um neto do Armador original e o último Gerente da velha Parceria Geral de Pescarias, entretanto desaparecida. Também antigos instruendos, com destaque para a veterana e grande amiga do CREOULA, Dra. Raquel Sabino Pereira, que detém o recorde de embarques no navio, com 14 viagens desde Maio de 1988, incluindo a participação na Cutty Sark Tall Ships race de 1988 manifestou de forma emocionada a sua ligação ao veleiro, dando um presente ao navio e abrindo um site dedicado à história do antigo bacalhoeiro (http://lmc-creoula.blogspot.com/).
Pouco depois o CREOULA largou para o Atlântico Norte e participou nas comemorações do Dia da Marinha na ilha de São Miguel, estando agora a navegar no Mediterrâneo.
Além do CREOULA foi construído na mesma altura em Lisboa um lugre gémeo, que o Armador Sr. Vasco Bensaude cedeu à família Orey durante a construção. Este navio devia ter-se chamado ARGUS, mas recebeu o nome SANTA MARIA MANUELA e pertenceu à Empresa de Pesca de Viana até ser vendido em 1964 à Empresa de Pesca Ribau, de Aveiro e transformado em navio motor em 1969. O casco foi entretanto recuperado e o SANTA MARIA MANUELA está o a ser reconstruído em Aveiro.
Em substituição do navio cedido à Empresa de Pesca de Viana, Vasco Bensaude mandou construir em 1939 na Holanda o lugre ARGUS, muito semelhante ao CREOULA, com uma série de melhoramentos ditados pela experiência das duas primeiras campanhas de pesca do CREOULA.
O ARGUS foi vendido em 1974 ao estrangeiro e navega nas Caraíbas como veleiro de cruzeiros com o nome POLYNESIA. A dispersão da antiga frota bacalhoeira portuguesa conta ainda com o lugre patacho GAZELA, que foi adquirido por interesses dos EUA e está preservado em Filadélfia.
Em Portugal, o CREOULA continua a navegar e a dar a conhecer o mar a novas gerações de marinheiros. A sua preservação activa é um dos mais positivos empreendimentos marítimos das últimas décadas ocorridos em Portugal, quase uma excepção num quadro pouco marítimo de desinvestimento persistente no que toca ao mar ocorrido na Europa e no nosso País. Mas com o CREOULA a navegar não há lugar para pessimismos desnecessários, mas sim alegria pelo legado dinâmico do navio e esperança num futuro mais próximo do mar, da marinha e dos navios.

Luís Miguel Correia, escrito a 20 de Agosto de 2007 e publicado na revista MAGAZINE GRANDE INFORMAÇÃO, nº 19, edição de Setembro/Outubro 2007, páginas 112 a 119

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