quinta-feira, 15 de maio de 2008

A “Espuma“ do NTM “Creoula”


«Registou-se recentemente a morte da mascote do Navio de Treino de Mar “Creoula”, a cadela “Espuma”. A Revista da Armada consagra-lhe hoje estas linhas, porque a “Espuma” fazia parte integrante da guarnição do NTM “Creoula” desde há quinze anos, ou seja, ao longo de quase toda a vida do “Creoula” como Navio de Treino de Mar (relembra-se que esta segunda etapa do navio teve início em 1987.).

Nascida em 30 de Março de 1990 no canil das Avencas – Parede, a “Espuma” foi oferecida pela respectiva proprietária, criadora de cães-de-água, prestigiada raça canina portuguesa que, como o nome sugere, evidencia características de uma particular adaptação à vida do mar com a existência de membranas interdigitais relativamente desenvolvidas, ao mergulhar as narinas ficam bloqueadas evitando a entrada de água para a garganta e os regulares movimentos de cauda, semelhantes aos de uma hélice, de modo a impulsionar o corpo, quando em natação – para além do espesso revestimento de pêlo encaracolado, destinado a conferir-lhe resistência durante as longas permanências na água fria.

A “Espuma das Avencas”, nome de registo, integrou a guarnição do “Creoula” com apenas um mês de idade, e cumpriu desde então no navio uma comissão correspondente aos seus quinze anos de vida – aliás, com os maiores zelo, empenho e dedicação, como diríamos se nos encontrássemos a redigir o louvor de um elemento da guarnição, quando do seu destacamento. E, de certo modo, talvez seja um pouco disso que se trata... mas, mais do que um louvor, é sobretudo o evocar da sua recordação que constitui a razão de ser deste pequeno texto.

Uma memória muito grata partilhada por diversos comandantes (houve troca de telefonemas na data da morte da “Espuma”...), dezenas de oficiais, centenas de elementos da guarnição...e milhares de jovens que, embarcados no “Creoula”, puderam vivenciar de modo directo a ligação ao mar e à vida de bordo, através da experiência marcante de um treino de mar neste navio...

Ao longo de década e meia, foram mais de sete mil e quinhentos os instruendos, designação atribuída aos jovens embarcados no “Creoula” que travaram conhecimento com a “Espuma”, lhe fizeram festas ou pediram a pata, a fotografaram ou se fizeram fotografar ao seu lado, posando por vezes a cadela com o boné do “Creoula” e lhe ofereceram pistaccios – guloseima preferida – em troca de uma profunda gratidão...

Extraordinariamente meiga e dócil, soube ser a mascote ideal, perfilando-se com os instruendos e a guarnição na formatura das 8:30 h, partilhando os momentos de enjoo quando estava mar, mas também os momentos de lazer no convés, os banhos de mangueira a meio-navio nas tardes de calor tórrido e os refrescantes mergulhos em alto mar, com o “Creoula” pairando ao largo nos anos de juventude, ninguém a conseguia impedir de saltar para a água quando via mergulhar o primeiro instruendo, fazendo apelo ao seu instinto protector de cão-de-água...; nos portos, muitos foram os bons momentos na companhia dos instruendos, na praia, de que era particular apreciadora, ou percorrendo, pela trela, os longos passeios marítimos nas noites cálidas de Verão.

E por falar em noites, como não recordar os momentos em que servia de almofada aos jovens que resolviam passar a noite no convés observando as estrelas, encolhidos no seu saco-cama, sob a pilha de dóris ? E se não fosse quase segredo, poderíamos ainda evocar a imagem de algumas meninas de 14, 15 anos, que levavam ao colo a pequena “Espuminha” para dormir no 3º beliche... e que, quem sabe, hoje, 15 anos depois, talvez tenham oferecido aos seus filhos um pequeno cão-de-água, também preto e encaracolado...

Marinheira com mais horas de navegação a bordo, a “Espuma” navegou ininterruptamente durante catorze Verões relembra-se que na qualidade de Navio de Treino de Mar, o “Creoula” navega, todos os anos, sensivelmente, entre os meses de Maio e Outubro, fez escala nos mais diversos portos da costa portuguesa, Madeira e Açores, bem como portos estrangeiros (de entre os quais, países da Escandinávia, Amsterdão, Bruges, Londres, Weymouth, St. Malo, Vigo e la Coruña – e no Sul da Europa e Norte de África, Tunísia, Nápoles, Génova, Nice, Barcelona, Valência, Cádiz, Ilhas Canárias, Tânger, Ceuta e Casablanca, tendo efectuado também a viagem ao Canadá em 1998, no âmbito do projecto: ”Creoula - de novo na Terra Nova.” Marcou com a sua presença tanto as missões mais curtas, correspondentes a um fim-de-semana ou alguns dias navegando ao longo da costa portuguesa, regista-se a sua predilecção pela Berlenga... como as longas regatas internacionais – as famosas “Cutty Sark” – e os cruzeiros oceânicos, com duração superior a um mês.

O actual Comandante, quando interrogado sobre a “Espuma”, costumava dizer, precisamente:”É o elemento da guarnição que tem mais horas de navegação, o que melhor conhece o navio. Se pudesse falar, creio que participaria de modo muito válido em todas as operações de manobra do navio, e contribuiria realmente, com indicações precisas, como: a escota não passa por aí, ou: isso nunca se fez assim...”

Há ainda que recordar a sua vertente de estrela dos meios de comunicação social. Ao longo dos quinze anos, foram muitos os jornais e revistas que, em trabalhos sobre o “Creoula” se referiram, em termos sempre elogiosos, à “Espuma”, tendo alguns publicado artigos a seu respeito, na generalidade ilustrados com respectiva fotografia em diversos contextos da vida a bordo. Foi ainda protagonista de programas transmitidos pela televisão, tendo chegado mesmo a ser entrevistada pelos apresentadores, prova a que se prestava com a bonomia e afabilidade que mantinha em todas as situações, como boa embaixadora do navio.

É justo relembrar aqui os sucessivos tratadores que a ela se dedicaram ao longo dos anos, zelando de modo próximo e atento pela sua saúde e bem-estar, controlando as tosquias, as vacinas...e convidando-a inclusivé para passar em sua casa, na companhia de crianças - e até de outros cães! - fins-de-semana ou períodos de festa, como o Natal...

Não seria correcto deixar também de mencionar os cozinheiros que, ao longo dos tempos, mimaram a “Espuminha”, reservando-lhe sempre um pitéu especial... razão pela qual o capacho da cozinha se tornou um dos seus lugares predilectos a bordo.

Cumpre ainda, neste pequeno texto, render tributo de gratidão à Dra. Jacqueline Silva Dias, viúva do saudoso Comandante Silva Dias, que nutria pela cadela grande afecto, aliás totalmente retribuído e que, na última fase da vida da mascote, lhe proporcionou os maiores cuidados e carinhos, na exacta medida em que a “Espuminha” os merecia.

Sabemos que todos os que, elementos da guarnição ou instruendos do “Creoula”, conheceram a “Espuma” estão de acordo: a “Espuma” merecia tudo. E nunca a esquecerão».

Fonte: «Revista da Armada», edição de [Agosto de 2005]